quarta-feira, 21 de março de 2012

Eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobêjo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira— só meu companheiro amigo desconhecido.[...] Mas eu aguentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, désse as minhas carnes alguma coisa. “

João Guimarães Rosa, in 'Grandes sertões: Veredas'.
[...]resistamos, portanto, às paixões quando elas se aproximam, já que, conforme disse, é mais fácil não as deixar entrar do que pô-las fora.

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'
De que vale no mundo ser-se inteligente, ser-se artista, ser-se alguém, quando a felicidade é tão simples! Ela existe mais nos seres claros, simples, compreensíveis e por isso a tua noiva de dantes, vale talvez bem mais que a tua noiva de agora, apesar dos versos e de tudo o mais. Ela não seria exigente, eu sou-o muitíssimo. Preciso de toda a vida, de toda a alma, de todos os pensamentos do homem que me tiver. Preciso que ele viva mais da minha vida que da vida dele. Preciso que ele me compreenda, que me adivinhe. A não ser assim, sou criatura para esquecer com a maior das friezas, das crueldades. Eu tenho já feito sofrer tanto! Tenho sido tão má! Tenho feito mal sem me importar porque quando não gosto, sou como as estátuas que são de mármore e não sentem.

Florbela Espanca, in 'Correspondência (1920) '
Na vida de toda a gente há braçados floridos dessas tolices sem importância. Só a raros eleitos é dado o milagroso dom de um grande amor. Eu teria muita pena que o destino não me trouxesse esse grande amor que foi o meu grande sonho pela vida fora. Devo agradecer ao destino o favor de ter ouvido a minha voz. Pôr finalmente, no meu caminho, a linda alma nova, ardente e carinhosa que é todo o meu ampa­ro, toda a minha riqueza, toda a minha felicidade neste mundo.

Florbela Espanca, in 'Correspondência(1930)'
Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. Por eu amar a Deus, meto-me a pé pela estrada fora, coxeando penosamente para o levar aos outros homens. E não reduzo o meu Deus à escravatura. E sou alimentado com o que ele dá a outros. Eu sei assim reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é que ele não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca.

(Antoine de Saint-Exupéry, in 'Cidadela'.)

Ele, que nos deu o pequeno príncipe de presente, acredita ter sido "cidadela" a sua obra mais completa. Foi a última, se não me engano.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O que é perda?

- Lembra quando a joaninha pousou no seu ombro? Primeiro você se assustou e ficou com medo de se mexer. Aí ela foi descendo pelo seu braço e foi fazendo uma coceirinha gostosa. Você foi gostando e começou a olhar de perto aquele corpinho vermelho e redondinho, pintado de bolinhas pretas , com perninhas finas igual ao cabelo da mamãe. Você se divertia com os passeios que ela fazia no seu braço até que você, morrendo de vontade dela ser seu bichinho de estimação, tentou pegá-la. Aí ela voou. Perda é quando a joaninha voa.

- Mas eu ainda sinto a cosquinha que ela fazia.
- Isso já é outra coisa, meu filho. Isso é saudade.


(autor desconhecido)

Para todos aqueles que fazem meu coração entupir de saudade.

domingo, 11 de março de 2012

' [...]Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.
A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é [...]'
(Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida')
A definição de 'grande homem' está feita já, e com exatidão. O grande homem é aquele que pelo raciocínio atingiu uma maior soma de verdade, ou pela imaginação as maiores formas de beleza, ou pela ação os mais altos resultados, do que todos os seus contemporâneos na latitude do seu século. Esta obra superior em verdade, em beleza, em bondade ou utilidade, é produzida por um não sei quê que possui o grande homem, que se chama génio, cuja natureza não está suficientemente explicada mas que constitui uma força infinitamente maior que o simples talento, o simples gosto ou a simples virtude.

(Eça de Queirós, in 'Notas Contemporâneas')
O hábito de me recolher a mim mesmo acabou por me tornar imune aos males que me acossam, e quase me fez perder a memória deles. Desse modo, aprendi com base na minha própria experiência que a fonte da felicidade reside dentro de nós e que não está no poder dos homens fazer com que fique realmente desgostosa uma pessoa determinada a ser feliz. Por quatro ou cinco anos desfrutei regularmente de alegrias interiores que almas gentis e afectuosas encontram numa vida de contemplação.

Jean-Jacques Rousseau, in 'Devaneios de um Caminhante Solitário'
O mundo é um grande espelho. Ele reflete de volta o que você é. Se você é carinhoso, se você é bondoso, se você é prestativo, o mundo se mostrará carinhoso, bondoso e prestatito para você. O mundo é o que você é. (Thomas Dreier)
Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida. Ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem número, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio, mas isso te custaria a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Aonde leva? Não perguntes, siga-o! (Nietzsche)

sábado, 10 de março de 2012

Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesma me agito e perturbo em consequência da instabilidade em que esteja.
Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto ora outro, segundo o lado para o qual me volto.
Se falo de mim de diversas maneiras, é porque olho prá mim de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma.
Envergonhada, insolente, casta, libidinosa, tagarela, taciturna, estudiosa, requintada, engenhosa, tola, aborrecida, complacente, mentirosa, sincera, sábia, ignorante, liberal, avarenta, pródiga, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância.
Não posso aplicar a mim mesma um juízo competo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra.

Montaigne (1592)- Adapatado-
‎" Compreendi então que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste somente no pensar e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. Desse modo, esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e até mesmo que ela é mais fácil de conhecer do que ele e, ainda que esse nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é." (Rene Descartes, in O Discurso do Método)
‎' Quando ninguém entende, ninguém pode exigir que você preste contas...' ( Bernhard Schlink, in O Leitor)
‎' De tudo ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro." ( Fernando Sabino, in O Encontro Marcado)
' Tem horas que eu penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades?' ( João Guimarães Rosa, in GS:V)
'Mas eu olhava esse menino com um prazer de companhia que nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que el era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse[...]'
(J. Guimarães Rosa, in Grande Sertões:veredas)